quinta-feira, 31 de maio de 2012

Biogr. Kamenezky


Teresa Rita Lopes recebeu nova comunicação de Álvaro de Campos – que se apressa a dar a conhecer.

Eliezer Kamenezky
A revelação-mor da sua “Quase-autobiografia” pessoana, faz questão de realçar Cavalcanti Filho, é a de que Elieser Kamenezky é um novo heterónimo de Pessoa, a acrescentar ao de José Coelho Pacheco e Padre Matos, entre outros que inegavelmente existiram como António Botto e Mário de Sá Carneiro e – revelação ofuscante! – D.Sebastião!
No prefácio que fez ao livro de poemas de Eliezer Kamenezky, Alma Errante, em 1932, o Fernando tem o cuidado de aconselhar o leitor a que os leia “sem Grécia, isto é, sem estética nem metafísica” nem “preconceitos estéticos” porque “são infantilmente sinceros – têm uma poesia própria, independente da poesia que é propriamente poesia”. Está tudo dito: não são poesia a valer. Jamais Pessoa assumiria qualquer dos seus versos. Que papel terá tido nesse livro? A rogo do judeu russo, seu amigo - que estaria tão empenhado em legar livros à posteridade como o nosso Biógrafo a decisiva biografia de Pessoa! – ter-lhe-á passado os poemas à máquina, limpando-os dos seus erros ortográficos e outras muitas impurezas mais evidentes: por isso alguns ficaram no espólio pessoano, o que não é prova que Pessoa os tivesse escrito. (O Fernando costumava fazer cópias do que escrevia à máquina.) Também lá está o romance que Kamenezky quis publicar, Eliezer – o papel que nisso teve o Fernando é coisa para meditar, não aqui – e isso não quer dizer que seja de Pessoa. (Que o judeu russo lhe pagou por essas colaborações, como acusa indignadamente o Biógrafo? Porque não, se ele podia e o Fernando precisava? Pensa que ele nadava em dinheiro, como o Sr.?)
Jamais da pena de Pessoa sairiam “infantilidades” - assim por ele consideradas no prefácio - como os versos de Alma Errante. Pequenos exemplos:

Como uma borboleta voa /Atrás de outra, no ar,/Assim eu vou atrás de ti,/
Dias e noites, com o meu pensar.

Outra infantil “sinceridade”:

Quem ama e não encontra o seu ideal /É tão infeliz, e desgraçado, /
Como eu…

Dou ao Biógrafo, de borla, esta sugestão: a certa altura, uma voz feminina responde ao amado com estes esplêndidos versos: “Querido, os teus versos são pétalas / Da tua alma sofredora./ Cada uma encerra o aroma / Da tua alma sonhadora.” Mais um heterónimo neto do Fernando: heterónimo feminino do heterónimo Kamenezky…
O Biógrafo prova definitivamente a sua atribuída autoria invocando o final do poema (em que o Poeta se dirige à amada, “esculpida com persistentes marteladas / No mármore vivo da minha dor / E do meu sofrimento”) em que ela se põe a tocar Beethoven, Chopin e Mendelssohn e não músicas lá da sua terra, Kalinkas e coisas assim… (Já agora , fique sabendo que Mendelsshon era judeu!) Que o Sr. acredite que essa máquina e a secretária que acaba de comprar pelo preço de um apartamento eram do Fernando, é lá consigo, mas que queira atribuir-lhe esses versos indigentes é que já é connosco…Na sua ânsia de revelar o verdadeiro e ainda oculto Pessoa, inventa heterónimos que nunca existiram como tal ou que foram gente de verdade e, opostamente, tenta desatribuir obras, como o Guia de Lisboa que já está provado por quem sabe e pode fazê-lo que saiu mesmo da pena do Fernando… Não suba o coleccionador acima das suas colecções…
Mas olhe: por si até tenho simpatia, como por todos os coleccionadores. (Até lhe direi ao ouvido onde pode adquirir o urinol que retiraram do Martinho da Arcada de que – ah isso com certeza! – o Fernando se serviu muitas vezes!) A quem eu não perdoo é às figuras mais ou menos públicas que têm promovido os seus irresponsáveis dislates.

Álvaro de Campos, pela pena de Teresa Rita Lopes
---------
Nota: O meu agradecimento à professora 
Teresa Rita Lopes que hoje, dia 31 de Maio de 2012, me fez chegar este texto, depois de ler este.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

A maior novidade deste livro

Fernando Pessoa: uma quase autobiografia
de José Paulo Cavalcanti Filho

"Não será hábito começar uma recensão de um livro por citar outras apreciações já publicadas. Mas neste caso torna-se irresistível falar na maneira como a mais recente biografia de Pessoa foi sendo recebida nas últimas semanas: Fernando Pessoa seria homosexual? Sim, Cavalcanti diz que Pessoa era gay (já agora, também era Gandhi). A devassa levada a cabo pelo "Brasileiro" continuou inclusive pela descoberta de mais 55 heterónimos e por ousar dizer que Pessoa, afinal, não tinha imaginação.
Escapou a todos a maior novidade deste livro: o facto de não ser um livro com novidades.
Não me percebam mal, a edição é cuidada e a investigação minuciosa, mas (...)". Continue a ler aqui.

Nuno Hipólito

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Entre a corrida e o voo

"Não tenhamos, pois, receio de uma descoberta catastrófica que faça tábua rasa da nossa experiência - entre a corrida e o voo há a transição do salto."

Leonardo Coimbra
A Luta pela Imortalidade (1918)
p. 136

terça-feira, 22 de maio de 2012

Não foi de burro

"Não foi de burro, ajaezado à andaluza, mas de smoking, isto é, de grande burguês em traje de gala ou de «lepidóptero» engalanado, o que ia dar ao mesmo (...)."

António Quadros
da Introdução a Obra Poética Completa, de Mário de Sá-Carneiro
Publicações Europa-América (1991), pp. 19-81

Uma nova realidade aqui


"Talvez que o mais original da escrita de Mário de Sá-Carneiro seja não propriamente o insólito das situações e das personagens que elaborou, projecções de uma realidade-além e de um homem-Outro, isto é, dupla aspiração quimérica de uma objectividade e de uma subjectividade diferentes das que o envolvem e definem social e psicologicamente no extrínseco do ser, mas o modo surpreendente como utilizou os adjectivos e os advérbio ao serviço da tal diferença, procurada e obtida, fazendo-os caracterizar ou ferir os substantivos e os verbos (...) de forma tão singular, bizarra, insólita e contudo intencional, que dir-se-ia pretender o escritor a criação de uma nova realidade aqui.

António Quadros
da Introdução a Obra Poética Completa, de Mário de Sá-Carneiro
Publicações  Europa-América (1991), pp. 19-81

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Campos manifesta-se sobre os seus 206 colegas heterônimos (127+75+5)

Carta psicografada por Teresa Rita Lopes

Fernando Pessoa: uma quase autobiografia
 de José Paulo Cavalcanti Filho
"Imaginar esse livro a servir de manual aos nossos estudantes – que têm todos Pessoa nos programas – causa-me tal calafrio que dou comigo a rapar da pena para essa inglória tarefa! É que o abnegado ex-ministro declarou publicamente estar disposto a abdicar dos seus direitos de autor para, com eles, porem nas mãos dos estudantes portugueses esse instrumento indispensável. (Lembra-nos outro político mas esse, ao menos, deu-lhes um objecto útil, um computador, enquanto que este devia ser retirado do mercado. Devíamos arranjar, para controlar estas situações, algo como a ASAE, que nos defende de alimentos impróprios para consumo.)
Vamos por partes – que o livro tem 700 e tal páginas ! (...)"

Teresa Rita Lopes

sábado, 19 de maio de 2012

"Aparentemente conciliador mas intimamente revulsivo."


"103.º Dia

Com o seu inesgotável talento, aparentemente conciliador mas intimamente revulsivo, António Quadros descreve, numa palestra pública, como é que, há longos longos anos, o Estado não atende à voz dos «intelectuais», fenómeno que explica a crise que, há longos longos anos, se instalou entre nós. Não atende, quer dizer, não entende. Porque é que os «intelectuais» não deitam mão ao Poder?"

104.º Dia

(...) Que obstáculo se interpõe entre os «intelectuais» e os poderes do Estado? Shakespeare, que sabia destas coisas, fez dizer a Júlio César: «Cássio é homem perigoso. Lê muito e pensa demasiado».
Vou eu andando na rua a pensar nisto tudo e dou de caras com o Manuel Múrias que logo, truculento como uma personagem shakespereana me atira: «Sou muito seu amigo, mas já preveni na família: este Orlando Vitorino é o homem mais perigoso que há em Portugal. Se ele ganha as eleições, sou o primeiro a fugir». Não há dúvida: o Múrias também sabe destas coisas."

Orlando Vitorino
em "O processo das Presidenciais 86",
(1986), p. 62

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Da arte de contar


"A arte de contar mergulha as suas raízes num mundo primitivo ou primordial que, no entanto, nos habita ainda. Arcana ars foi o centro irradiante de onde nasceram, em formas cada vez mais independentes e separadas, a poesia, o drama, o actual romance e, até, a filosofia, se nos lembrarmos de que nos filósofos pré-socráticos, mesmo num Platão ou num Plotino, o mito mal se deixa cobrir pela reflexão. Contar foi reconstituir em palavra, em voz e em música os actos originais que fundaram o cosmos e o homem. Contar, imitando o ritmo do verso o próprio ritmo da natureza e dos ciclos criadores estabelecidos pelos deuses e, pelos génios e pelos heróis, foi manter viva, através de gerações e para além do tempo, uma tradição apontando a mitos antigos e eternos pelos quais os homens se habilitariam ao «conhece-te a ti mesmo» que, em Sócrates, aparece repetido e todavia de certo modo negado. Contar foi, afinal, interpretar o tempo presente à luz de um tempo cujos pontos idênticos e equidistantes existem infinitamente longe no futuro, de tal modo que, em última análise, passado e futuro se dão as mãos graças à palavra, anuladora do tempo, do contador de mitos ou de histórias. Assim, no mais significativo dos contos em terra portuguesa originados, o conto dos Lusíadas-argonautas que Luís de Camões narrou em estâncias epopeicas, a gesta do descobrimento é actualizada em mito, não com algo que existe no passado, mas com algo que coexiste e coexistirá sempre ao tempo dos Portugueses, dinamizando toda a sua história e marcando ao futuro uma interpretação que transformará o ciclo da viagem-tempestade-descoberta-regresso em substância de uma vida reintegrada nos arcanos divinos - pois também o homem parte, sofre e só depois de se encontrar poderá reintegrar-se no seio de uma realidade transcendente e primordial. (...)"

António Quadros
Do prefácio a Adeus, Amigo!... (1960)
de Maria Irene Dionísio

Como?

"O autor, advogado e ex-ministro brasileiro, é um apaixonado pela vida e obra do poeta da Mensagem tendo reunido neste volume um manancial impressionante de informação alguma dela nova. Uma leitura agradável que conduz à releitura de Pessoa e portanto a uma melhor compreensão de Portugal."

Carlos Fiolhais 
no Público de hoje

terça-feira, 15 de maio de 2012

No caminho para uma comunhão futura

‎"Justiça, liberdade e desenvolvimento iluminar-se-iam sob um novo foco e poderiam reconciliar-se no caminho para uma comunhão futura, se pudéssemos colocar ao seu lado, no mesmo plano de urgência, os valores da beleza, de amor e de verdade."

António Quadros

Carta de Álvaro Ribeiro a António Telmo, 30 de Outubro de 1958

(...) Nesta Lisboa dos cafés vão-se desmoronando as tertúlias, em consequência das invejas e das intrigas. Há duas semanas que não vejo o António Quadros. As conversas habituais causam desânimo. O que me vale, acredite, é o vício de escrever para longe…


Leia aqui.

domingo, 13 de maio de 2012

Franciscanismo na filosofia portuguesa


O Centro de Estudos de Filosofia (CEFi) da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, organiza a 23 de maio um seminário integrado no projeto "Presença do Franciscanismo na Filosofia Portuguesa". Este é o primeiro de vários encontros sobre figuras franciscanas que estão a ser objeto de investigação, casos de Santo António de Lisboa, Frei Gomes de Lisboa, Frei André do Prado, Frei Cristóvão de Lisboa, Frei Agostinho de Macedo e Francisco da Gama Caeiro.
O ciclo, organizado em parceria com o Centro Cultural Franciscano, vai também centrar-se em pensadores com reflexão inspirada no carisma de S. Francisco de Assis, como Leonardo Coimbra, António Quadros e Sebastião da Gama.
A sessão inaugural realiza-se a partir das 14h30 na sala 131 da sede da Universidade Católica.

Via Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.
http://www.snpcultura.org/franciscanismo_filosofia_portuguesa.html

sexta-feira, 11 de maio de 2012

1888


"A avaliar por alguns textos até 1979 ainda inéditos e publicados em Sobre Portugal*, Fernando Pessoa terá chegado a admitir que o Encoberto era... ele próprio. Esta convicção é rastreável pelo menos entre as datas de 1925 e 1928 ou 1929, não é tão insólita como pode parecer à primeira vista, se considerarmos:
  1. A adesão de Pessoa ao conceito de uma República Aristocrática; logo, a transferência de uma Rei hereditário para uma personalidade «eleita» do alto.
  2. A desilusão, não só pela morte de Sidónio, mas sobretudo pela pouca influência que o Presidente-Rei deixou atrás de si.
  3. A sua exigência de um Quinto Império, não material, mas cultural e espiritual.
  4. O seu conceito de que os verdadeiros criadores de civilização são as grandes figuras intelectuais, como  Camões, Shakespeare - e o anunciado Supra-Camões dos artigos de 1912 na Águia.
  5. A sua insinuação de que esse Supra-Camões viria a ser o poeta então desconhecido que já experimentava dentro de si a força de um grande génio criador.
  6. A consciência da sua espiritualidade supranormal, ponteada de inspirações, iluminações, visitações enigmáticas e até fenómenos místicos, conforme vimos no capítulo anterior.
  7. Daí, a crença de que ele próprio era, como vimos, um Emissário, comissionado do Alto para trazer uma Mensagem de salvação ao povo português.
  8. Crença esta por assim dizer confirmada pela sua descoberta de que a Ordem Templária de Portugal estaria extinta em dormência desde cerca de 1888, data do seu nascimento, e de que, por conseguinte, o testemunho lhe fora passado por força do destino.
  9. E, por outro lado, a convicção de que ninguém, como ele próprio, teria entre os seus contemporâneos a capacidade de ser mais paradigmaticamente português, isto é, de ser tudo, de todas as maneiras, ou, como cantou pela voz de Álvaro de Campos no extraordinário poema, já citado, Afinal a melhor maneira de viajar é sentir - sentir de todas as maneiras (...)
  10. A certeza de que ninguém, entre os Portugueses, preencheu tão cabalmente aquela condição, ele que foi não só Fernando Pessoa, mas também Campos, Reis, Caeiro (...) desta forma realizando em sia, de forma fingida mas real, aquela supra-humanidade ou aquela semidivindade que funda o paganismo. Lembremos aqui a sua citação de Píndaro: A raça dos deuses e dos homens é uma só.
  11. Enfim, a sua descrição astrológica de uma das quadras do Bandarra, a que mais adiante nos referiremos.
Assim este homem ensimesmado, angustiado, quase apagado e aparentemente modesto, por alguns anos guardou para si, com a megalomania do génio, não diremos a convicção, mas a suspeita de que, mais do que um Emissário, seria talvez um Intermediário pesado de transcendência, esse encoberto misterioso predito pelo Bandarra e que teria vindo a esta terra infeliz para fundar o Quinto Império, o Império do Espírito Santo. (...)"

António Quadros
"1888" em Fernando Pessoa - Vida, Personalidade e Génio (1984) , pp. 244-248


[Sobre este assunto vale ainda a pena ler o texto "Fernando Pessoa - Eu ser descoberto em 2198", de Jerónimo Pizarro publicado na Revista Ler nº 109, Janeiro de  2012, disponível aqui.]

*Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Iluminantes revelações

Fernando Pessoa: uma quase autobiografia
 de José Paulo Cavalcanti Filho

"Confesso que esta noite não vou dormir a tentar lembrar-me se a sapataria onde o Pessoa elegantemente se calçava era Contente ou Contexto. É que, sem isso, como afirma o biógrafo, nunca chegaremos ao entendimento da sua obra! - à revelação do “testamento” que a obra pessoana constitui e “que esperou 70 anos” “que alguém a desvende”. Salvé, senhor ex-ministro da Justiça, que com estas iluminantes revelações vai finalmente fazer jus ao génio do Fernando!
Com igual rigor investigatório e interpretativo, diz o autor da biografia (quase) que eu me chamo Álvaro de Campos porque o Fernando tinha um dentista que se chamava Ernesto de Campos! Agora sou eu que me vou pôr a investigar sobre algo de tão importante para a minha identidade: com quantos Campos, além do engraxador, do moço dos recados e do criado de café, lidava quotidianamente o Fernando.
Peço a quem me ler, e tiver alguma informação a este respeito, que faça o obséquio de ma comunicar, que eu não tenho posses para pagar a informadores. (...)"
Teresa Rita Lopes 

Perfeitamente indispensável

Fernando Pessoa: uma quase autobiografia
 de José Paulo Cavalcanti Filho

"Prometo que me vou avidamente precipitar sobre o seu livro. Se o senhor entretanto comprar a arca, quem sabe se eu até vou escrever que saber o nome da sapataria onde o Fernando se calçava, e da rua da tabacaria que me inspirou e da lavadeira Irene e sua filha Guiomar é perfeitamente indispensável para entender a nossa obra – nossa, sim, que detenho um razoável número de quotas nessa empresa. (...)"

Teresa Rita Lopes 

Peregrinação na noite

Anrique Paço d'Arcos e Teixeira de Pascoaes
"A sua obra [de Anrique Paço d'Arcos] situa-se, sem dúvida, na esfera pascoalina do lirismo saudosista e simbolista. (...) Não é o arrebatamento sem limites, não é o poder mitogénico, não é o estilo torrencial, não é a poderosa dialéctica de sombra e de fogo, do autor de Marános, de Regresso ao Paraíso, de Elegia do Amor, porque é, digamos, um saudosismo mais humano e por isso também mais frágil, mais voltado para dentro, mais interrogativo. (...) A sua poética permanece a de um simbolismo neo-romântico, marcado pelo saudosismo e pela procura de um sentido religioso para a vida, para o cosmos e para o homem.
Mas há na sua obra uma exemplaridade de que talvez não se dê conta. É a exemplaridade do que é autêntico, do que é sério e do que se liga profundamente às raízes da sua própria identidade ou do próprio ser. (...) O itinerário de Anrique Paço d'Arcos é, no fim de contas, uma peregrinação na noite, mas com a luz do divino no horizonte."

António Quadros
"Um herdeiro dilecto de Teixeira de Pascoaes: Anrique Paço d'Arcos"
em Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa (1992), pp. 140-143
[do artigo "A Poesia de Paço d'Arcos" publicado na revista Tempo de 27.5.1982]

O toiro celeste passou


"O Toiro Celeste Passou [Afonso Botelho, 1965] não é apenas a sua melhor novela: é também, não hesitamos em afirmá-lo, uma das mais invulgares novelas com que pode contar a nossa literatura contemporânea. (...) A novela flui com naturalidade, a partir de um dado inicial ou fabuloso, de função provocadora e dialéctica. (...) Este processo dá efectivamente à novela um cariz existencial que se irá confirmando pouco a pouco. Apresenta-nos Afonso Botelho a dialéctica da honra e da verdade, que também pode traduzir-se como dialéctica do personalismo e da filosofia. Mas onde, quanto a nós, Afonso Botelho supera a interpretação puramente kafkiana ou existencialista, é na coincidência com outras dimensões que abrem a simbólica da novela a uma amplitude muito maior. (...) Sejamos um pouco mais precisos. A novela abre com uma epígrafe aparentemente enigmática, mas que justifica inteiramente o seu titulo: Nout, a deusa do céu, acolhia o sol como o Toiro celeste, incarnação da virilidade (Textos da Pirâmide). Logo, apresenta-nos quatro amigos, de caracterologia diferente e bem marcada, jogando às cartas e conversando. Qual seria a sua reacção quando postos face a face com a sua própria verdade, com a verdade que o homem-pessoa, que o homem-convencional oculta de si próprio e sobretudo dos outros? É então que, provocado e invocado pelo diálogo, o toiro celeste passa, deixando na cabeça de cada um o ornato que tradicionalmente significa a infidelidade da mulher. (...)"

António Quadros
"Entre o Amor a Morte, entre a Honra e a Verdade" 
em Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa (1992), pp. 158-159
[de artigos publicados no Diário Popular, de 11-08-1966 e de 19-03.1967]